Índices

sábado, 9 de maio de 2015

"Meia boca" ou "meio boca"?

     É bastante comum nos depararmos, nas redes sociais, com pessoas dedicadas a corrigir o português escrito digitado por outras, que muitas vezes são desconhecidas. O problema acontece quando "esses constrangedores corretores ortográficos públicos, gratuitos e que aparecem feito certo antivírus cujo nome-não-deve-ser-pronunciado-para-que-ele-não-se-instale-por-conta-própria-no-meu-notebook-nem-no-aparelho-de-quem-ler-o-texto" se metem a querer corrigir palavras e expressões que muitas vezes não se encontram dicionarizadas ou cuja escrita não é ensinada e sequer passa pela nossa cabeça até o momento em que nos vemos obrigados a escrevê-las - porque tais palavras e expressões pertencem ao universo do português informal, o conhecimento de sua escrita não sendo exigido porque presume-se que alguém jamais precisará escrevê-lo em algum documento formal, oficial, sério.
     Uma dessas expressões é a, imagino eu, conhecidíssima "meia boca", de escrita facilmente deduzível, ao contrário de muitas outras, já que todo mundo suficientemente instruído sabe como escrever as palavras "meia" e "boca". Quanto à utilização, essa expressão serve para medir a qualidade de algo, indicando que aquilo não é lá essas coisas, que vale um investimento pesado. Sobre a origem dela, o site Origem da Palavra informa, que:


Por ora, a informação que obtivemos relaciona a expressão ao Italiano ESSER DI BUONA BOCCA, "ser de boca boa", ou seja, comer de tudo, consumir sem problemas. Ao contrário, "meia-boca" seria alguém cujo desempenho à mesa não fosse tão completo - e, por extensão, qualquer equipamento ou situação desta ordem.


     Entretanto, eu sempre especulei, especulo e continuarei especulando que a origem da expressão tenha a ver as bocas dos fogões. Explico: uma vez que uma boca do fogão acessa por inteiro apresenta uma chama com o máximo de intensidade, enquanto uma boca acessa pela metade apresenta uma chama mais tênue, logo, uma "boca inteira" seria sinônimo de "trabalho bem feito", "completo", "intenso" ou "dotado de qualidade", ao passo que uma "meia boca" seria o mesmo que "trabalho mal feito", "incompleto", "fraco", "sem qualidade (suficiente)" ou "cru".





     De qualquer forma, o fato é que ambas as possíveis explicações trazem a solução para o problema da correção que frequentemente os "entendidos" fazem dessa expressão. Qual a correção frequentemente feita?
     Alguns alegam que é errado dizer e escrever "meia boca", o correto sendo "meio boca", pois, já que a intenção é expressar um noção de intensidade (ex.: isso não é tão bom assim, é meia boca), deve-se, então, utilizar o advérbio invariável de intensidade "meio", e não o variável numeral fracionário "meio(a)". Porém, apesar de aparentemente fazer sentido, essa explicação é improcedente.
     Primeiramente, porque a noção de intensidade em questão não é transmitida pelo primeiro elemento de composição da expressão, mas sim pela expressão como um todo. Em segundo lugar, porque mesmo que assim fosse, que a noção de intensidade estivesse sendo expressa pelo primeiro elemento de composição da expressão, então não teria o menor sentido utilizar o advérbio invariável de intensidade "meio", já que este se junta somente a adjetivos, como em "meio feliz" (muito feliz, pouco feliz), "meio tarde" (muito tarde, um pouco tarde) e "meio rápido" (muito rápido, pouco rápido) - e como sabemos, "boca" é substantivo.
     Então é correto dizer e escrever "meia boca" [1] ? Sim, corretíssimo, pois "boca" é substantivo e, como ambas as propostas de origem da expressão apresentadas mostram, o termo "meia" em questão não é um advérbio de intensidade equivocadamente flexionado, mas sim um numeral fracionário flexionado em sua forma feminina para concordar adequadamente com o substantivo da expressão.
     Para finalizar:

Meio(a) -> Numeral fracionário que concorda normalmente e se liga a substantivos. Ex.: meia-noite, meio-dia, meia boca.

Meio -> Advérbio de intensidade invariável, que se liga a adjetivos. Ex.: meio triste, meio tarde, meio rápido, meio assustado.







Nota

[1] Embora a expressão esteja escrita com hífen no site Origem da Palavra, optei por escrevê-la sem hífen meramente porque considerei-a não como uma palavra composta (que forma um todo semântico, os seus componentes perdendo um pouco dos seus próprios sentidos em detrimento do todo, que muitas vezes passa a ter sentido figurado), mas sim como uma locução (que não forma um todo com unidade semântica perfeita, uma vez que seus componentes preservam seus próprios sentidos). Sim, eu sei que a expressão em questão aparenta ter sentido figurado, já que "meia boca" é diferente de "meia boca", entretanto, na verdade, ela atua como locução adverbial de intensidade, visto que ninguém diz (Pelo menos, eu nunca vi ou ouvi. Você já? Comente) coisas como "Aquele meia boca" ou "Seu meia boca!". Ao que me consta, a expressão sempre é utilizada determinando alguma coisa, como em "Aquele médico meia boca!" ou "Seu cantor meia boca!". A outra "meia boca" se refere a uma boca mesmo (seja essa boca a parte do corpo, a parte do fogão ou um ponto de venda de drogas) pela metade, como em "ele pintou só meia boca" ou "ela controla meia boca".

Texto originalmente publicado em: Blog do Leno.

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