Se tem uma coisa que me deixa incomodado é aquele momento em que alguém solta uma frase do tipo "tal livro/autor não é literatura/literário". Sim, é verdade que muitos especialistas se engalfinham à procura do estabelecimento de um conceito fechado em torno da palavra, mas, verdade seja dita, esse engalfinhamento chega bem perto de ser pura perda de tempo. Literatura é arte e esta é simplesmente a maneira pela qual podemos reconhecer nossos iguais, isto é, os outros humanos.
Penso, logo existo, mas... E você?
Para entender melhor o que quero dizer, faz-se necessária a referência a Descartes e a sua célebre máxima "Penso, logo existo". Princípio de toda a certeza racionalista, tal máxima significa "se eu penso, então tenho tenho consciência de mim" ou "seu eu penso, então sei, tenho certeza de algo" e corresponde à certeza da existência da mente, e não à do corpo - de modo que, por exemplo, uma pessoa desmaiada momentaneamente não existe (FONSECA).
Entretanto, observemos que, se um indivíduo pensa, então ele somente pode ter certeza acerca da sua própria existência e não pode, portanto, ter nenhuma certeza de que qualquer outra pessoa, animal ou objeto existe [1], a não ser que ele tivesse como acessar diretamente a mente dos mesmos, por meio de um processo telepático [2]. Aliás, pode-se dizer que não é a toa que indivíduos esquizofrênicos, por exemplo, não consigam distinguir "pessoas reais" de "pessoas projetadas pela mente deles" [3].
John Nash (sentado) e uma das pessoas projetadas pela sua própria mente (Uma Mente Brilhante) |
Entretanto, a despeito dos pontos que ajudam a refutar o solipsismo, pode-se estender essa compreensão para a figura da divindade única e aproximá-la (a compreensão) de ideias mais antigas, como o conceito hindu denominado maya, no qual a realidade é uma ilusão projetada pela mente da divindade absoluta. Ou seja, uma extensão desse entendimento daria margem para a ideia de que "a divindade é tudo e todas as coisas constituem a divindade", pois todas as mentes seriam fragmentos do que se pode chamar de "A Consciência Universal e Suprema" [4].
Enfim, essa questão acerca do "conhecimento de sua própria existência" pode ser visto como a base de alguns tipo de loucura ou como um entendimento religioso ou mesmo científico da realidade [5], mas o fato inegável é que o indivíduo continua apenas tendo certeza de sua própria existência, de sua própria mente. Então, como comprovar que as outras pessoas são reais? É aqui que entra a arte.
Arte e Literaturas
A arte pode, basicamente, ser entendida como "um ou o instrumento humanizador", isto é, como aquilo que permite que um homem [6] tenha acesso indireto [7] ao pensamento de outrem, pois, independentemente da cultura, todos estamos sujeitos às mesmas necessidades e (quase) as mesmas percepções, permitindo, portanto, que o artista compartilhe suas vivências, observações e pensamentos, com as quais o receptor pode se identificar, constando, assim, que as coisas por ele vividas, observadas ou pensadas, se não são "normais" (isto é, a regra), ao menos não são exclusivas a ele. Ou seja, as artes (todas as nove: música, dança, desenho & pintura, escultura, teatro, literatura, cinema, fotografia e quadrinhos) permitem que as pessoas encontrem os seus iguais e se vejam como homens.
Assim, sendo uma arte, a literatura também exerce essa mesma função, humanizando as pessoas que com ela entram em contato e necessariamente comportando um discurso - e quanto a isso, o meu exemplo preferido é o de Jorge Amado, cuja primeira fase se caracteriza por obras propagandistas do comunismo/socialismo, ideologia da qual o escritor baiano era seguidor e, inclusive, foi filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Porém, embora a se possa responder a pergunta "O que é literatura?" com "a literatura é uma arte", outra pergunta passa a existir (e eu penso, sinceramente, que essas duas perguntas sejam confundidas por muita gente como se fossem uma só): "O que pode ser considerado como literatura?" ou "Quais produções escritas podem ser consideradas literatura/literárias?".
Jorge Amado, quando ainda era filiado ao PCB. |
Obviamente, não são todas as produções escritas que podem ser incluídas sob o rótulo de "literatura", pois, com toda certeza, não há nada de artístico numa bula de remédio, por exemplo [8]. Entretanto, é um fato que o termo é utilizado para se referir a produções que certamente não possuem nenhuma intenção artística, servindo mais como fonte de informação do que qualquer outra coisa (embora isso também possa ser visto como compartilhamento de vivências), como é o caso da literatura médica.
Deste modo, podemos dividir as produções escritas (chamadas de "literaturas" porque o termo já é utilizado independentemente de qualquer viés artístico) em três tipos:
1) "Literatura artística" ou o que se costuma chamar de "texto literário". Aqui entrariam gêneros textuais como o romance, o conto, a poesia e a crônica;
2) "Literatura não-artística" ou o que se costuma chamar de "texto não literário", bem como "texto do dia a dia". Aqui entrariam gêneros textuais mais funcionais, de circulação cotidiana e necessária para o funcionamento mais imediato da sociedade ou de parte dela, atuando como uma espécie de cola, como a ata, o ofício, o relatório e outros, muitos dos quais estabelecem mais uma relação de informação e comunicação;
3) "Literatura intermediária". Basicamente, aqui entram os gêneros textuais que mesclam características dos dois tipos anteriores, como é o caso da carta.
Outra maneira de explicar esses três tipos é dizendo que a "literatura artística" possui a capacidade de fornecer prazer ao leitor, não necessariamente possuindo um compromisso com a fiel retratação da realidade, de modo que as personagens, os cenários e as histórias contadas podem ser fictícias sem gerar quaisquer problemas, enquanto a "literatura cotidiana" não tem ou deve ter a intenção de dar prazer a quem lê, possuindo um necessário compromisso com a realidade, visto que muitos funcionam como comprovação de algo e a utilização de personagens, cenários ou histórias fictícias traria muitos problemas. Obviamente, há exceções.
De volta ao incômodo: Ruth Rocha versus Harry Potter e afins
Como dito no começo do texto, se tem uma coisa que me deixa incomodado é aquele momento em que alguém solta uma frase do tipo "tal livro/autor não é literatura/literário". E fico ainda mais incomodado quando esse tipo de afirmação parte de um escritor, pois a "literatura artística" será produzida por determinado autor a partir de seus pontos de vista, sentimentos e técnicas narrativas por ele dominadas e/ou escolhidas. Portanto, toda vez que um escritor faz isso, não deixo de pensar que se trata de uma tentativa de polemizar (obtendo, assim, atenção para si e para as suas obras, visto que quem o desconhece logo irá pensar algo do tipo "Quem é esse e o que já escreveu de bom para falar isso?") ou de despeito, mas prefiro ficar com a primeira possibilidade.
No caso, o que me motivou a escrever esse texto foi a entrevista dada por Ruth Rocha ao site Ig, em 27 de abril deste ano, quer dizer, parte da entrevista, mais especificamente quando ela ataca os best-sellers contemporâneos, dizendo:
Isto não é literatura, isto é uma bobagem. É moda, vai passar. Criança deve ler tudo, o que tem vontade, o que gosta, mas eu sei que não é bom. O que eu acho que é literatura é uma expressão do autor, da sua alma, das suas crenças, e cria uma coisa nova. Esta literatura com bruxas é artificial, para seguir o modismo. Acho que o Harry Potter fez sucesso e está todo mundo indo atrás. (Ruth Rocha, respondendo à pergunta "O que acha destes novos best-sellers, que misturam fantasia, com a presença de vampiros e bruxas?")
Considerando o que ela disse ao Uol dois dias depois, isto é, que "Harry Potter não é literatura, digo isso mesmo. É entretenimento, é best-seller. Mas nunca falei para tirar da livraria", isso sendo seguido por um "disse a autora, que afirma ter lido o primeiro livro da saga de Rowling". Pergunto: só leu o primeiro? Penso, sinceramente, que qualquer opinião emitida por qualquer pessoa sobre qualquer coisa deve, no mínimo, considerar o todo que está sendo criticado, e criticar o primeiro livro da autora britânica sem considerar os demais livros da saga me soa como impróprio.
A escritora brasileira Ruth Rocha (imagem tirada daqui) |
Além disso, ainda ao Uol, a autora disse que acha "Marcelo, Marmelo, Martelo" (de sua autoria) mais literário que Harry Potter. Cabe informar que ela foi questionada sobre qual dois dois tem mais valor, se o livro da autoria dela ou se a saga do bruxo, o que apenas reforça o que eu disse no parágrafo anterior: uma coisa é emitir opinião sobre um livro da saga, e, aparentemente, a escritora brasileira poderia fazê-lo e comparar "Harry Potter e a Pedra Filosofal" com "Marcelo, Marmelo, Martelo" sem nenhum problema, mas penso ser imprópria a comparação de um único livro com uma saga inteira, principalmente porque é possível perceber a evolução da escritora britânica no decorrer dos sete livros de Harry Potter.
Quanto à explicação dela sobre o porquê de achar o seu próprio livro mais literário do que Harry Potter, isto é, "Literatura é arte. Inclui linguagem, sentimento, emoção. Um modo de ver a vida. Uma série de coisas que, quando preenchida, se torna arte", a meu ver, só serve para contradizer a própria Ruth Rocha, vejamos o porquê.
Primeiramente, o que será que ela quis dizer com "linguagem"? Se considerarmos que, talvez, a intenção era dizer que a "literatura artística" caracteriza-se pela utilização de um código cuja resolução leva a uma mensagem oculta ou algo do tipo, bem, então devo informar que muitos dos leitores de Harry Potter (a saga, não apenas o primeiro livro) em algum momento já devem ter feito associação entre o termo "sangue ruim", as questões relacionadas à pureza do sangue e a marca do raio na testa do protagonista com o nazismo. E antes que alguém que nunca questionou isso diga que estou inventando ou forçando a coisa, sugiro que vasculhem a net atrás de artigos científicos, teses e afins sobre "Harry Potter e nazismo". Não haverá surpresa ao se depararem com cerca de uma dúzia de trabalhos acadêmicos (entre papers, artigos científicos e teses) sobre essa temática [9], que se encontra ali, nas entrelinhas dos sete livros da saga.
Harry Potter, exibindo a cicatriz que mais lembra o "s" da logo das SS. |
Portanto, há pelo menos uma linguagem em Harry Potter, uma temática que é trabalhada de maneira não (tão) explícita e que precisa ser decodificada para ser integralmente alcançada. Outra linguagem inclusa diz respeito aos nomes de personagens e das casas de Hogwarts, todos carregando algum significado a ser decifrado.
Em segundo lugar, dizer que literatura inclui também sentimento e emoção e afirmar que a saga em questão não é literatura é o mesmo que dizer que os sete livros que a compõem são desprovidos de sentimento e de emoção, o que implica dizer, por exemplo, que todos os leitores que cresceram acompanhando a série de livros de Rowling e que se identificaram com determinada personagem ao ponto de sentirem muito a morte dela (tais como Sirius Black, Alvo Dumbledore e Severo Snape) são uns fingidos ou algo do tipo.
Bom, penso que a constatação de haver ao menos uma linguagem, bem como sentimento e emoção em Harry Potter já seria o suficiente para mostrar que sim, que Harry Potter é "literatura artística", e de acordo com a própria explicação de Ruth Rocha sobre literatura. Entretanto, falta o "modo de ver a vida", e ele está presente também. Afinal de contas, como a matéria da revista Superinteressante diz, "não é preciso muito para ver na simpatia da autora por Grifinória um gesto antielitista, antiesnobe, a favor da miscigenação". Aliás, parte da visão de mundo e dos valores da autora que se encontram na obra podem ser visto na anteriormente mencionada matéria.
Enfim, penso que já tenha ficado claro, mas, apenas para concluir, Ruth Rocha também disse que tais best-sellers não passam de bobagem, de moda, de algo passageiro, e que foi Harry Potter que fez sucesso e passou a ser seguido por outros. Entretanto, Harry Potter, lançado em 1997, não foi a primeira produção escrita sobre a temática e tampouco a primeira a fazer sucesso, como exemplos, temos: "Os Livros da Magia", uma HQ do britânico Neil Gaiman, lançada antes de 1990 e também existente na versão de livro, escrito por Carla Jablonski (devidamente licenciada por Gaiman); e a série de livros "Os Mundos de Crestomanci", da britânica Diana Wynne Jones, cujo primeiro volume, "Vida Encantada", foi lançado em 1977 [10].
Finalizando
Como deu para perceber, a definição em torno do termo "literatura" é problemática, o problema se agravando pela confusão entre dois questionamentos, "o que é literatura?" e "quais produções textuais podem ser consideradas como literatura?", cuja devida identificação nos fornece respostas esclarecedores, "literatura é uma arte (e discurso), com papel de humanização" e "as produções textuais podem pertencer a um de três tipos de literatura".
Esse problema é tamanho, que se torna extremamente perigoso sair por aí classificando esta, essa ou aquela produção como sendo ou não literatura (artística), podendo acontecer o que aconteceu com a escritora Ruth Rocha, que fez uma declaração inapropriada sobre a natureza (artístico) literária da saga Harry Potter e, ao tentar explicar o porquê da sua declaração, acabou fornecendo munição contra si mesma.
Por fim, é sempre bom ler (e assistir, ouvir, provar) alguma coisa na íntegra (caso seja um só livro, deve-se ler o mesmo por inteiro, mas caso se trate de uma série, o ideal é ler todos os livros dela) para poder emitir uma opinião, de fato, apropriada e bem embasada, evitando cair em contradições.
Notas:
[1] Isso é uma conclusão a que se chega automaticamente. Mais sobre isso pode ser encontrado aqui e aqui. O texto "Incrível! Satan aparece em desenho infantil, confira!" também trás essa conclusão e parte do pensamento abordado aqui.
[3] Bem, se você já viu o filme "Uma Mente Brilhante" (e eu espero sinceramente que já tenha feito isso, pois esta nota carrega revelações acerca do enredo), então sabe do que estou falando, bem como que o protagonista conseguiu essa proeza ao observar que ele havia envelhecido, enquanto o seu colega de quarto na universidade, a sobrinha dele e o agente secreto não haviam sofrido com a passagem do tempo.
[4] Aliás, essa ideia da realidade como uma ilusão também pode ser vista no filme Matrix, que também explica o porquê de o mundo ter desigualdade e desgraças (o mundo perfeito não havia dado certo, não conseguia se sustentar e a mente humana não o aceitava), isso também servindo de contraponto para um dos pontos que refutam o solipsismo, o de que, se você projeta todas as coisas que existem, então, por qual motivo não é um milionário?
[5] Sim, "científica", visto que a simulação computacional consta como uma das "4 definições absurdas (e possíveis) do universo".
[6] Utilizado com o sentido original da palavra, isto é, de referir-se à espécie Homo sapiens sapiens.
[7] No caso, o acesso direto corresponderia a uma provável entrada na mente da outra pessoa, tal como personagens da ficção [o mutante Professor Charles Xavier, o androide Visão, o marciano Ajax, etc,] fazem, utilizando-se de seus dons telepáticos.
[8] Penso que um artista conceitual discordaria disso, mas me refiro à utilização primária da coisa.
[9] No momento não dá para fazer isso, mas, assim que der, lincarei todos esses trabalhos.
[10] Apenas para ficar nesses dois exemplos, mas há muitos outros, os quais, juntamente com esses dois, sustentam uma tese que de Harry Potter seria um plágio.
REFERÊNCIAS
CÂNDIDO, Antônio. A literatura e a formação do homem. Disponível em: <http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/remate/article/viewFile/3560/3007>. Acesso em: 09 mai. 2015.
FISHER, Luís Augusto. Os 7 segredos de Harry Potter. In: Superinteressante. Jan. 2004. Disponível em: <http://super.abril.com.br/cultura/7-segredos-harry-potter-444332.shtml>. Acesso em: 09 mai. 2015.
FONSECA, Flávio Netto. Penso, logo existo. Disponível em: <http://www.philosophy.pro.br/penso_existo.htm>. Acesso em: 08 mai 2015.
GURTNER, Christian. Solipsismo - a esquizofrenia filosófica. Disponível em: <http://www.escribacafe.com/solipsismo-a-esquizofrenia-filosofica/>. Acesso em: 08 mai. 2015.
Incrível! Satan aparece em desenho infantil, confira! Publicado em 20 jul. 2011. Disponível em: <http://www.nerdmaldito.com/2011/07/incrivel-satan-aparece-em-desenho.html>. Acesso em: 08 mai. 2015.
Info: Os mundos de Crestomanci - Diana Wynne Jones. Publicado em: 15 mar. 2010. Disponível em: <http://www.sobrelivros.com.br/info-os-mundos-de-crestomanci-diana-wynne-jones/>. Acesso em: 09 mai. 2015.
MACHADO, Ítalo. Magia, escolas e acusações de plágio: As histórias por trás da saga Harry Potter. Publicado em: 03 jun. 2013. Disponível em: <http://literatortura.com/2013/06/magia-escolas-e-acusacoes-de-plagio-as-historias-por-tras-da-saga-harry-potter/>. Acesso em: 09 mai. 2015.
MARIANI, Caio. Cogito ergo sum - Descartes. Disponível em: <http://www.afilosofia.com.br/post/cogito-ergo-sum-descartes/318>. Acesso em: 08 mai. 2015.
OLIVEIRA, André Jorge de. 4 definições absurdas (e possíveis) do universo. Publicado em: 17 set. 2014. Disponível em: <http://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Espaco/noticia/2014/09/4-definicoes-absurdas-e-possiveis-do-universo.html>. Acesso em: 08 mai. 2015.
O que é literatura? (1) Disponível em: <http://www.soliteratura.com.br/introducao/>. Acesso em: 09 mai. 2015.
O que é literatura? (2). Disponível em: <http://www.soliteratura.com.br/introducao/introducao02.php>. Acesso em: 09 mai. 2015.
The defintion and concept of Maya in hinduism. Disponível em: <http://www.hinduwebsite.com/hinduism/essays
Texto originalmente postado no Blog do Leno.
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