Índices

sábado, 13 de dezembro de 2014

Haveria racismo e discriminação em "Aventuras de Xisto"?

   Pode-se considerar normal ou mesmo natural que determinadas, a maioria ou mesmo todas as obras de um escritor que nasceu e viveu durante uma época racista, misógina e homofóbica contenham elementos que representem o pensamento de tal período, entretanto, querer ver homofobia, misoginia e racismo, entre outros, em tudo chega a ser extremista e, em alguns casos, um ato de desespero fomentado por equívocos como a falta de atenção ou o desconhecimento histórico e geopolítico, entre outros.
   Um desses casos é uma publicação feita no blog "Perigo na Escola" (aparentemente criado e mantido ativo somente durante março de 2011) em que o livro "Aventuras de Xisto", da autora Lúcia Machado de Almeida, recebe a acusação explícita de ser racista e preconceituoso para com pessoas gordas, além de certa insinuação de misoginia. Vejamos o que diz a publicação:


O que vou contar aqui, nunca contei para ninguém. Tenho vergonha de falar sobre o assunto. É um trauma de infância e foi provocado por um livro adotado na escola como LEITURA OBRIGATÓRIA.
Acho que eu estava na quinta ou na sexta série quando a professora MANDOU que  nós lêssemos o livro As aventuras de Xisto. É um livro sobre um garoto na Idade Média, com bruxos e bruxas. As bruxas são as vilãs, e são mulheres velhas, corcundas e feias. Como na época da inquisição.
Mas foi uma outra coisa no livro que provocou todo o problema. Os dois personagens principais da história são Xisto e Bruzo. O livro diz que: “jamais iria haver no mundo mais generoso coração, mais lúcida inteligência e mais nobre alma do que a de Xisto!”. Xisto era magro, loiro de olhos azuis, um típico ariano! Já Bruzo “engordou e ficou barrigudo, mas cresceu um pouco. Amigo de Xisto desde a infância, continuou a sê-lo na adolescência. Pena que tivesse raciocínio um tanto confuso”. Enquanto Bruzo é gordo e burro, Xisto é magro e inteligente. E Xisto é loiro. Bruzo é moreno! A autora Lúcia Machado de Almeida aprendeu bem com Lobato como ser racista e eugenista.
Hoje eu consigo olhar para esse livro e até ler, mas durante muito tempo eu passava mal só de olhar para a capa dele. Mas guardei como uma recordação do suplício pelo qual passei e como uma advertência. Claro que ele está escondido. Não iria deixar meus filhos terem contato com esse tipo de livro, cheio de racismo e preconceito contra pessoas acima do peso.
Acontece que quando eu era pequeno, eu já era meio gordinho. Era também moreno. E alguém resolveu me chamar de Bruzo. Me chamavam de Bruzo e diziam que eu era gordo e burro como ele! Eu chorava muito, e não queria ir para a escola, mas minha mãe me obrigava. Eu cheguei a falar para minha mãe sobre o livro, mas ela disse que a professora que tinha mandado ler e que a professora não ia escolher o livro errado. E ir para a escola ia se tornando um suplício cada vez maior, uma tortura. Eu chegava e as crianças já iam gritando: Olha o Bruzo, burro e gordo!
E o pior é que tivemos até que fazer uma prova sobre o livro. Fiquei traumatizado e nunca tive coragem de falar sobre isso com ninguém, mas tenho coragem agora.
Assim como eu, muitas outras crianças acima do peso devem ter sofrido com esse livro e obrigada a ler ele. E o pior de tudo é que ele ainda está aí, em muitas bibliotecas escolares e adotava por professores como leitura obrigatória. Que mal estamos fazendo para nossas crianças! E ninguém faz nada! (PERIGO NA ESCOLA. 2011)


   Então, o trecho na publicação que chamou minha atenção foi esse: "(...) Enquanto Bruzo é gordo e burro, Xisto é magro e inteligente. E Xisto é loiro. Bruzo é moreno! A autora Lúcia Machado de Almeida aprendeu bem com Lobato como ser racista e eugenista". Acontece que, em primeiro lugar, não tem nada aí que possa ser caracterizado como racista tal qual em Monteiro Lobato. Eugenista? Talvez, mas a estória em questão se situa num hipotético "reino situado num enorme continente que se perdia no meio do mar, ignorado pelo resto do mundo" (DE ALMEIDA. p.06), ou seja, desprovido de qualquer contato com, por exemplo, asiáticos, ameríndios e africanos, se é que o mundo em questão é o nosso.
   Além disso, cabe ressaltar que o adjetivo "moreno" ali presente, apesar de ser utilizado eufemisticamente para se referir a alguém de tez escura, querendo-se evitar que a utilização de qualquer outro termo possa ser tomada como racista, tem em seu sentido original a designação da cor de cabelo. Enquanto "loiro(a)" designa alguém de cabelo amarelo e "ruivo(a)" se refere a alguém de cabelo vermelho, "moreno(a)" diz respeito a alguém cujos cabelos são pretos ou castanhos.
   Talvez aí resida a confusão acerca do suposto racismo equiparável ao presente na obras de Lobato, confusão essa que não se justifica, pois o livro é ilustrado e e Bruzo aparece nas que constam nas páginas 07, 29, 40 e 125, fora as ilustrações em que aparece transformado em bebê:





   Como é possível ver, o coadjuvante Bruzo, que era magro, mas engordou, possui a tez clara como a do protagonista Xisto, portanto, não cabe aqui associar o termo "moreno" à cor da pele. Porém, além do suposto racismo, acho que também cabe discutir a suposta misoginia, a questão da eugenia e, por fim, a discriminação contra pessoas gordas.


Misoginia em "Aventuras de Xisto"?

   Além da acusação de racismo, a publicação no blog já mencionado diz ainda que "as bruxas são as vilãs, e são mulheres velhas, corcundas e feias", entretanto o livro é bem claro ao descrever a existência de apenas quatro bruxos no mundo, dos quais apenas Fredegonda é mulher, conforme o seguinte fragmento, extraído da página 14.




   Dois séculos de vida... Como esperar que a pessoa não envelheça, mesmo tendo poderes mágicos, não é mesmo? Fora que pode muito bem se tratar apenas de aparência deliberadamente mantida por motivos diversos (amedrontar, passar uma imagem de fragilidade, etc), bastando lembrar que todos os bruxos da saga Harry Potter, por exemplo, envelhecem e mantém tal aparência, apesar de aparentemente serem capazes de viver longamente.
   Só que o livro "Aventuras de Xisto" fornece uma ilustração de Fredegonda, presente na página 69:




   Além de uma descrição da tal personagem, na mesma página:




   Ou seja, não é de todo verdade que "as bruxas são as vilãs, e são mulheres velhas, corcundas e feias", o mais acertado a dizer é que dentre os vilões principais, os quatro últimos bruxos restantes sobre o mundo, há um que é do sexo feminino e  que tem dois séculos de idade, portanto, sendo velha, andando curvada (a ilustração, ao menos, passa isso, um andar curvado, não uma corcunda) e tendo uma aparência que não é das melhores (embora seja melhor que a do primeiro bruxo derrotado, Jacomino, um ser mestiço de homem e árvore), sendo que o porquê da aparência de idosa é implicitamente explicado mais adiante, no seguinte trecho presente na página 75:




   Com isso pode-se concluir que, dentro do universo em que se passa a estória de "Aventuras de Xisto", não são todos os bruxos que podem aparentar ter a idade que desejarem e, dos quatro últimos restantes, apenas Minoco, O Senhor do Tempo, pode fazê-lo e "ele tem a faculdade de rejuvenescer ou envelhecer as pessoas à vontade" (DE ALMEIDA. p.71), o protagonista Xisto ainda deduzindo que é graças a ele (Minoco) que Durga, o mais velho e poderoso dos quatro bruxos, se mantém jovem. A questão é: por qual motivo ele não teria rejuvenescido Fredegonda também? Penso que talvez ela fosse considerada muito jovem para ser rejuvenescida.


"Aventuras de Xisto" e a apologia à eugenia

   Eu, particularmente, penso que não. A grande verdade é que qualquer pessoa pode ver absolutamente qualquer coisa que desejar em tudo. Assim, da mesma forma como tendemos a reconhecer rostos e outras imagens na natureza, como nuvens com formato de dragão ou mesmo a face do Filho do Deus Cristão em torradas, folhas de árvores ou no traseiro de um cachorro (não estou inventando, se você ainda não viu, procure, vira e mexe essas coisas aparecem no Feed do meu Facebook e, às vezes, até são noticiadas em um ou outro telejornal).
   Enfim, voltando à eugenia, Bruzo é retratado como:




   Lendo atentamente, pode-se perceber que ele não é visto como inferior ao protagonista, mas sim como um complemento. Enquanto um possui uma inteligência acima da média, o outro possui grande força física, também acima da média, como o trecho na página 41, quando os rapazes lutam conta Jacomino, diz:





   Além disso, há mais uma passagem, na página 44:





   Essa passagem levanta um questionamento sobre a suposta eugenia: Como pode o "ariano" Xisto ser fisicamente mais fraco que o "inferior" Bruzo? A ideologia da superioridade da raça ariana compreendia não somente a aparência e a inteligência, mas também a força física e mesmo o desenvolvimento de poderes místicos ou mentais, conforme Ricardo José Barbosa da Silva (2009. p.105) informa, ao tratar do pensamento de Lanz von Liebenfels:


Para ele, os deuses representavam formas superiores de vida (theozoa) anteriores e superiores a uma raça de homens-bestas (anthropozoa). Estes seres superiores eram dotados de órgãos sensoriais especiais que lhes conferiam poderes mentais extraordinários, mas que atrofiaram por conta da mestiçagem desses homens-deuses com os homens-bestas. Por isso, "Lanz insistia que um programa universal de segregação poderia chegar a restaurar esses poderes aos arianos, já que eles seriam os descendentes mais próximos dos homens-deuses".


   Ainda segundo o autor (na mesma página), a revista Ostara ajudou a difundir o pensamento de Lanz e influenciou o próprio Hitler.   Portanto, como é possível perceber, há uma relação de complementação entre as personagens e, além dessas passagens, temos ainda outra bem elucidativa, na página 16:




   Por ela é possível ver que, na realidade, Bruzo pode ser considerado um personagem com o que se chama de "deficiência intelectual", havendo em Xisto uma imagem de tolerância e compreensão para com o mesmo, não inferiorização. Penso que isso por si só baste para se fazer uso do livro como material de ensino de tolerância, coexistência e compreensão para com pessoas que são deficientes intelectuais, de aceitação do outro como ele é, ao invés de "não deixar seus filhos terem contato com esse tipo de livro".
   Parece mesmo que há uma tendência por negativar tudo e reduzir as coisas a um espectro de "preto ou branco", "oito ou oitenta", ao invés de procurar encontrar outras formas de lidar com elas, transformando-as em ferramentas úteis para o propósito civilizatório.
   É verdade que as personagens da estória em questão são todas de tez clara? Sim, é, mas também é verdade que a Idade Média propriamente dita, com suas ordens de cavalaria, seus monastérios, castelos e feudos foi um período histórico bem próprio do continente Europeu, no qual as pessoas possuem as características apresentadas pelas personagens da estória e, por mais que outras regiões tenham passado por períodos semelhantes, como é o caso do Japão, elas não tiveram as mesmíssimas características, ou seja, a obra procura seguir certo rigor histórico, sua trama estando situada numa região geográfica e historicamente relacionada à Europa.


A discriminação contra as pessoas gordas

   Para encerrar essa publicação, que ficou maior do que eu havia pensado, tem-se a questão da discriminação contra as pessoas acima do peso, a qual foi expressa pelo seguinte trecho:



Acontece que quando eu era pequeno, eu já era meio gordinho. Era também moreno. E alguém resolveu me chamar de Bruzo. Me chamavam de Bruzo e diziam que eu era gordo e burro como ele! Eu chorava muito, e não queria ir para a escola, mas minha mãe me obrigava. Eu cheguei a falar para minha mãe sobre o livro, mas ela disse que a professora que tinha mandado ler e que a professora não ia escolher o livro errado. E ir para a escola ia se tornando um suplício cada vez maior, uma tortura. Eu chegava e as crianças já iam gritando: Olha o Bruzo, burro e gordo!


   Quanto à questão da relação entre a discriminação contra pessoas acima do peso e o livro, penso que não se possa tomar o infeliz episódio em questão para tratar a obra como causa da discriminação, pois a aceitação e a discriminação são questão de educação e esta tem começo em casa, logo, o problema não é esta ou aquela obra, mas sim a falta de educação familiar voltada para a aceitação do outro como ele é aliada à ausência de imposição de limites.



Considerações Finais

   Se considerarmos que o ocorrido descrito pela publicação é um fato e não um factoide com o objetivo único de respaldar as acusações feitas ao conteúdo da obra, então tem-se uma infeliz coincidência, na qual havia um garoto com características físicas compatíveis às de um personagem de livro infanto-juvenil e outros tantos garotos e garotas desprovidos de educação voltada para aceitá-lo, assim, do jeito que ele era.
   Entretanto, penso mesmo que tais acusações sejam exageradas, não levando em consideração o próprio universo no qual a estória se situa e tratando a obra como a causa para o problema (supostamente) vivenciado.
   Por fim, interessei-me pelo livro, já que não o conhecia (ele pertence à Coleção Vaga-lume), e continuarei a pesquisar sobre o assunto, averiguando as outras obras da autora mineira, como: "Xisto no Espaço", "Xisto e O Pássaro Cósmico", "Spharion", "O Caso da Borboleta Atíria" e "O Escaravelho do Diabo".


Lúcia Machado de Almeida



Capa de uma das edições do livro "Aventuras de Xisto"





REFERÊNCIAS


DA SILVA, Ricardo José Barbosa. História invisível: Uma análise psicossocial das raízes mágico-religiosas do nacional socialismo. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-24022010-081416/publico/silva_rjb_do.pdf>

DE ALMEIDA,  Lúcia Machado. Aventuras de Xisto. 13ª ed. São Paulo: Ática, 1982. Disponível em: <https://pt.scribd.com/doc/6566064/As-Aventuras-de-Xisto#download>. Acesso em: 11 Dez. 2014.

MOULT, Julie. Woman passenger beaten by train thugs - for being FAT. Publicado em: 19 Out. 2009. Disponível em: <http://www.dailymail.co.uk/news/article-1221405/Overweight-people-campaign-make-Britain-fat-friendly.html>. Acesso em: 12 Dez. 2014.


PERIGO NA ESCOLA. Preconceito em Aventuras de Xisto. Publicado em: 06 Mar. 2011. Disponível em: <http://perigo-escola.blogspot.com.br/2011/03/preconceito-em-aventuras-de-xisto.html>. Acesso em: 11 Dez. 2014.


2 comentários:

Unknown disse...

Ler a sua análise me deu uma sensação de alívio enorme. Ao longo da minha infância, esse livro era o que eu mais gostava. Fiquei preocupado com o artigo no outro blog, porque, como Mestre em Ciências da Linguagem, não identifiquei elementos preconceituosos em "As Aventuras de Xisto" (considerando, claro, que li o livro vários anos antes do mestrado). De qualquer forma, ser "loiro, corajoso e inteligente" é um estereótipo dos heróis nos livros de fantasia medieval, bem como as bruxas serem "velhas, feias e más".

Unknown disse...

Nunca vi tanta frescura e tanto mimimi. Li esse livro na minha infância. Foi o melhor livro que já li naquela época, considerando a faixa etária. Inclusive cheguei a essa postagem justamente porque estou procurando o livro pra comprar e dar a meu filho. Nunca vi traços de preconceito no livro. A maldade está nos olhos de quem vê. Se você viu, então o preconceito está em você. Um ótimo livro.